Fragmentos: Dentro da noite veloz - Ferreira Gullar

A vida muda como a cor dos frutos lentamente e para sempre. A vida muda como a flor em fruto velozmente.
A vida muda como a água em folhas o sonho em luz elétrica a rosa desembrulha do carbono o pássaro da boca mas quando for tempo.
E é tempo todo o tempo mas não basta um século para fazer a pétala que um só minuto faz ou não mas a vida muda a vida muda o morto em multidão.


17 de ago. de 2006

O populismo e o lulismo

Folha de São Paulo - Tendências e Debates - São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2006

O populismo e o lulismo - RICARDO ANTUNES

A vitória eleitoral de Evo Morales na Bolívia, a ação de Chávez na Venezuela e a campanha pela reeleição de Lula no Brasil reascenderam as velhas teorias do populismo. Homogeneizadora de fenômenos díspares, unificadora de singularidades distintas, a teoria do populismo mais obliterou do que ajudou na compreensão dos diversos governos que marcaram a política brasileira e latino-americana recentes.

Se Vargas estruturou nosso projeto de nação, Lula é partícipe ativo de seu desmoronamento. Como entender, então, o lulismo?

De Vargas a Perón, de Cárdenas a Alvarado, de Fujimori a Collor, todos se homogeneízam pela elasticidade da teoria do populismo. Basta referir-se ao "povo", exasperar o demagogismo e aflorar o carisma para que a pecha de populismo seja imputada. É hora, então, de separar o joio do trigo.

Os russos, por exemplo, em meados do século 19, viram emergir a tendência populista (narodinik, de narod, povo) nos intelectuais que concebiam o campesinato como a força revolucionária capaz de transitar das comunidades rurais para o socialismo. Os russos souberam diferenciar o populismo tanto do czarismo quanto das demais variantes do socialismo revolucionário e do comunismo.

No Brasil, entretanto, o embaralhamento foi grande. O ademarismo, mais próximo do lúmpen, com a política da "paz e tranqüilidade" e do Estado protetor, bem como o janismo, mais vinculado ao universo assalariado das periferias e dos setores médios, com seu ideário moralista, foram tomados como exemplos de populismo. Estranhamente, o janguismo e o brizolismo também foram, o que ajudou a nublar as diferenças.

Vargas foi a matriz. De modo bonapartista, liderou um movimento que foi mais que um golpe e menos que uma revolução (burguesa). Buscou o apoio dos trabalhadores em sua relação com as classes proprietárias que de fato representava, mas, para fazê-lo, em um momento de forte dissensão entre as frações agrárias dominantes, precisava do apoio popular para erigir nossa ordem industrial. Arraes e até o prestismo foram caracterizados como variantes populistas na esquerda. Tomava-se, então, o traço singular da liderança, do carisma (nas análises mais conservadoras de Helio Jaguaribe e Guerreiro Ramos), ou como "fenômeno de massas" e de classes, dotado de certo traço manipulador (Weffort), ou ideologicamente respaldado pelo nacionalismo e pela política policlassista (Ianni), nas teorizações mais críticas.

Lembro-me que, em 1989, perguntou-se a três especialistas se Collor, Brizola e Lula expressavam alguma face populista, e todos responderam afirmativamente. Cada um ao seu modo concebeu o candidato analisado como populista. Parece necessário desfazer algumas identificações imprecisas.

Vejamos os casos de Morales, Chávez e Lula. O primeiro, recém-eleito, iniciou um processo de nacionalização das riquezas naturais na Bolívia. O significado e os interesses atingidos são evidentes. Chávez, numa das primeiras medidas de seu governo, impediu a privatização da PDVSA, a empresa venezuelana de petróleo. Lula simbolizou o início de seu governo quando começou a privatização da Previdência pública.

São medidas do mesmo talhe? Será o ressurgimento do populismo na América Latina? A questão essencial não parece ser o traço demagógico ou o "carisma" do "líder", ainda que esse elemento deva ser considerado, mas qual o sentido mais profundo de suas ações: evocam os "de baixo" para garantir os interesses dos "de cima" ou são dotadas de autenticidade, têm incidência real na melhoria das condições de vida da população trabalhadora?

Que interesses efetivamente representam? É por isso que Lula, embora se apresente como herdeiro de Vargas, mais se parece com seu avesso. Se o estancieiro dos pampas estruturou o nosso projeto de nação, o ex-artífice da metalurgia é partícipe ativo de seu desmoronamento. Como entender, então, o lulismo, movimento que nasce nas greves de 1978-80, que combateu o peleguismo sindical, descontentou o sindicalismo político tradicional e se transformou no caso exemplar do "self made man" brasileiro? Como compreender o novo "Messias" da política, que disse recentemente ter o "dom de falar direto com o povo"? Que ajudou a construir um partido para depois torná-lo prescindível? Que, ao mesmo tempo, traz regozijo aos bancos, locupleta parcelas do envelhecido "novo sindicalismo" encastelado na máquina estatal e ainda pratica um assistencialismo de arrepiar os velhos e autênticos assistencialistas? A teoria do populismo, uma vez mais, parece não dar conta.

RICARDO ANTUNES é professor titular de sociologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor, entre outras obras, de "Uma Esquerda Fora do Lugar".

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